1.
Na guerra, em todas as guerras, os que fogem das casas desejam regressar.
Levam o que podem, deixam quase tudo na esperança de que seja apenas um pesadelo, na esperança de que tudo possa melhorar.
Os que fogem das cidades e aldeias da Ucrânia, de cada esquina de cada rua de Gaza ou do sempre esquecido Sudão vão com a roupa no pelo e carregam as malas que podem, mais os filhos e o som das sirenes entranhado nos ouvidos.
2.
Na guerra, em todas as guerras, há pessoas que parecem formigas atordoadas à procura de um buraco onde possam descansar ou desaparecer.
Imagina-te onde as bombas caem.
Imagina as tuas crianças em lágrimas ou tão assustadas que as lágrimas deixaram de cair.
Imagina-te a escolher o que levas em duas ou três mochilas, imagina-te a olhar pela última vez para a casa que julgaste ser o teu porto de abrigo, imagina-te a fechar porta.
3.
Não é possível imaginarmos.
Por muito que seja o nosso talento de efabular, é impossível colocarmo-nos na pele de quem ouve o som de uma bomba a voar sem saber onde irá cair.
Um assobio impossível de esquecer para quem o ouve.
Um assobio impossível de reproduzir por quem nunca sentiu tal enormidade.
4.
O mundo sobressalta-se de formigas à procura de um formigueiro que não existe.
Milhões de pessoas como nós, iguais a nós, que nasceram como nós, de mães como as nossas, com placentas a cair em baldes e choros de vida e esperança.
Milhões de pessoas com duas ou três malas que fecharam a porta da sua casa na esperança de um dia regressar.
E os que se safam, os que conseguem sobreviver, fazem como os pinguins quando caminham para o lugar do acasalamento ou para o sítio onde as suas crias os aguardam à procura de alimento.
Os que se safam voltam sempre a casa.
Mesmo que a casa já não exista.
Mesmo que haja um vazio de pó, areia e escombros onde antes existiam livros, naperons, quadros, desenhos das crianças, televisão, roupas, loiças e o espírito do que foram um dia.
A guerra é inominável.
Retira-nos tudo o que julgámos ser.
Mata-nos até a possibilidade de regressar.
Mas sabendo isso não há quem não o faça.
Não há quem não volte a uma casa que já não existe.
Texto e programa de Luís Osório
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