1.
Mais de meio milhão de mortos na Ucrânia.
Quase 100 mil tombados em Gaza.
Talvez milhares no Líbano e Sudão.
Mas os telejornais não mostram os seus corpos.
Os jornais não nos oferecem as imagens de olhos sem vida, do sangue real, do fim concreto.
Podemos comer e beber sem que a nossa digestão seja atrapalhada. Até os nossos filhos podem deixar-se ficar mais um bocadinho na sala – a morte é falada, mas não mostrada.
É como se não existisse.
É uma estatística como definiu Estaline perante o constrangimento do mundo civilizado de então.
2.
Falamos de exércitos que avançam, mas não dos que ficam esmagados na boca dos tanques.
Falamos de baixas, mas não lhes damos nomes e caras.
Falamos de objetivos quase conquistados, mas não do bafo que fica quando a bandeira é colocada no lugar mais alto.
E quando a morte é mostrada nunca o é de frente, podemos senti-la um pouco pelos lamentos dos que sobrevivem, de um pai ou de uma mãe que acaba de perder um filho, pelos gritos de vingança ou pelos depoimentos que comovem, mas não pelos corpos decepados, esquartejados, da morte ela própria.
3.
É doloroso o paradoxo.
Num tempo em que deixamos os nossos filhos abandonados em telemóveis – e eu também o faço, não me estou a excluir.
Num tempo em que os miúdos se perdem em jogos de matança e de monstros sanguinários.
Num tempo em que construímos relações a partir de sites de encontros.
Num tempo em que tudo parece volátil.
Num tempo em que já não sabemos sequer o nome dos nossos vizinhos – e eu também não, não me extou a excluir.
Num tempo em que somos todos os dias mais amorais e menos empáticos…
… é precisamente agora, neste tempo bárbaro e inclemente, que ocultamos o sangue das guerras por medo e pudor.
É fascinante, minha amiga ou meu amigo.
Tapamos a realidade e vivemos na ficção.
Criámos uma realidade paralela e evitamos o sofrimento das coisas concretas, do sofrimento concreto, do horror.
Pergunto-me muitas vezes, e agora também, se alguma coisa mudaria para melhor se víssemos os rostos de quem morre, se víssemos o sangue e as vísceras de quem é abatido, se víssemos pernas e braços espalhados pelas ruas?
Poderiam as guerras terminar mais cedo se estivéssemos conscientes?
Ou seria pior ainda?
Não nos estaremos a transformar em seres incapazes de viver na realidade? Incapazes de compreender a desgraça e a verdadeira dimensão da tragédia humana?
Não nos teremos infantilizado?
Seremos ainda humanos?
Texto e programa de Luís Osório
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