1.
Durante quatro anos ela chamava-o Sérgio, mas sabia que ele não se chamava assim.
E ele chamava-a Catarina, mas sabia que ela não se chamava assim.
Os dois eram jovens militantes comunistas e o Partido pediu-lhes em Vila Franca de Xira, no Verão de 1970, para fazerem o esforço de morarem juntos e fingirem ser um casal.
E foi assim que Armando, militante desde os 18 anos, e procurado pela PIDE se tornou Sérgio. E que Mariana, militante desde os 15 e neta de um dos fundadores, se tornou Catarina.
Armando era procurado pela polícia política do Estado Novo. A sua fotografia abrira um Telejornal e era necessário protegê-lo para que não fosse preso e torturado.
2.
Receberam um Cartão de Identidade com os seus novos nomes. A partir do momento que o guardaram na carteira fizeram-se por se esquecer dos verdadeiros nomes.
Nesse dia “morreu” o Armando Morais.
E “morreu” a Mariana Oliveira.
Não se conheciam, mas fizeram o que o PCP mandou fazer…
… nesse Verão tornaram-se um casal.
3.
Foram viver para uma casa no bairro de Campo de Ourique, em Lisboa.
Ela fazia o seu trabalho par ao PCP a partir de casa e ele saía para aqui e para ali, mascarado de um outro, para não levantar suspeitas.
Armando chamava-a de Catarina sabendo que ela era Mariana.
E Mariana chamava-o de Sérgio sabendo que ele era Armando.
E foi assim, numa casa clandestina, com poesia e vinho tinto, que caíram nos braços um do outro.
Chegaram ao Natal absoluta e radicalmente apaixonados.
Viveram quatro anos na clandestinidade, mudaram cinco vezes de casa e quando se dá o 25 de Abril já eram pais de dois filhos, o Sérgio e a Catarina.
Os camaradas controleiros começaram por estranhar que imitassem tão bem que eram um casal. Só realmente entenderam o que se passava quando Catarina a apareceu com uma barriga de bebé.
4.
Mais de 50 anos depois continuam juntos.
E tão apaixonados como no primeiro dia.
E de quando em vez, nos momentos mais íntimos, aposto que ele a chama Clara e ela o chama Sérgio, os nomes clandestinos que são a assinatura de uma relação que começou por ser uma encenação para se transformar numa peça que juraram representar todos os dias até à eternidade – o seu amor é a sua revolução privada, o seu Palácio de Inverno.
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