Quando, em 2016, chegou a notícia da atribuição do Nobel da Literatura a Bob Dylan houve tudo menos unanimidade, mas desde logo ficou claro que, mesmo se apenas justificada pela poesia criada para as suas canções, a distinção era feita a alguém já com livros publicados para além das recolhas das letras que levara aos discos. De Tarantula ao volume um das Crónicas, a obra publicada em livro por Bob Dylan mostrava já mais do que o poeta cantor. Estatuto agora mais ainda reforçado pela publicação de um volume de ensaios sobre canções, ao qual chamou The Philosphy of Modern Song e que terá muito em breve uma tradução para língua portuguesa disponibilizada entre nós.
O livro, que é o primeiro que Dylan publica depois da atribuição do Nobel, junta 66 ensaios sobre 66 canções, a mais antiga das quais sendo uma gravação de Keep My Skillet Good and Greasy por Uncle Dave Macon em 1924, a mais recente cabendo a Alvin Youngblood Herart, com uma versão, de 2004, de Nelly Was a Lady, de Stephen Foster, não sendo contudo a sequência de textos cronologicamente arrumada. Cada canção representa um capítulo que abre com um mergulho poético e pessoal sobre a respetiva canção, segundo-se depois uma reflexão sobre o artista, as formas e temáticas, a época ou o contexto em que surgiu.
Entre as muitas escolhas surge ali, por exemplo, o mítico Volare de Domenico Modugno, originalmente apresentado como Nel Blu Dipinto di Blu na edição de 1958 do Festival da Eurovisão (detalhe que Dylan nem sequer refere). No texto Dylan começa por criar um retrato mental, observando que, nesta canção, “a utopia é pintada a cor azul”. Depois sugere que “esta podia ter sido uma das primeiras canções halucinogénicas”, pretendendo por isso em quase dez anos o White Rabbit dos Jefferson Airplane. O facto de estar a escrever sobre uma criação cantada em italiano leva-o a refletir sobre como pode ser “libertadora” a escuta de uma canção numa língua que não entendemos. E dá como exemplo a ópera, e o modo como, mesmo sem a descodificação de uma palavra, o sentido dramático passa de facto do palco para o espectador. Sobre “Volare” nota ainda a dinâmica da voz na interpretação de Domenico Modugno e o tom sumptuoso da canção.
Num outro exemplo, ao falar sobre Beyond The Sea, na gravação, também de 1958, de Bobby Darin, Dylan conta que esta canção, um original de Charles Trenet, nos diz que “a felicidade está para lá do mar e para a alcançar temos de travessar o desconhecido”. Depois, ao referir-se ao cantor, que só já em adulto descobriu que aquela a quem toda a vida chamara irmã mais velha era na verdade a sua mãe, diz que “para Bobby Darin o passado era uma ilusão e por isso continuou a inventar coisas”.
Num outro capítulo, ao referir-se a Don’t Let Me Be Misunderstood de Nina Simone, reflete sobre o que é ser incompreendido ou entendido fora de contexto. Já sobre My Generation dos The Who debate o que é uma geração e como se relaciona cada qual com a anterior. Estas e outras observações passam ainda por canções de nomes como Elvis Presley, Carl Perkins, Little Richard, Elvis Costello, Ricky Nelson, Bing Crosby, The Temptations, Willy Nelson, Ray Charles, Hank Williams, Roy Orbison, Grateful Dead, Johnny Cash, Cher, Pete Seger, Judy Garland ou os The Clash.
A versão portuguesa, com o título A Filosofia da Canção Moderna, e tradução de Angelina Barbosa e Pedro Serrano será editada dia 24 deste mês pela Relógio d’Água, que tem no seu catálogo os outros livros já publicados por Bob Dylan.