Omara Portuondo conjuga-se em todos os tempos da música cubana. Aos 91 anos de idade, a sua discografia é um ziguezague contínuo: o historial de uma mulher que tanto esteve na crista do som nacional, como quase foi levada pela onda. E o legado de uma voz que, ao passo que devolvia Cuba aos ouvidos do mundo, se libertava ela própria da lei da morte.
Essa libertação aconteceu quase na viragem do milénio, 1999, quando Omara se fez membro fundador do Buena Vista Social Club. Sentou-se na cadeira de entrevistada para o documentário de Wim Wenders e cantou Veinte Años no igualmente mítico disco que então estava a ser gravado. A participação especial antecipou uma reviravolta na sua carreira, fruto do disco a solo que gravou para a série Buena Vista Social Club Presents. Era o seu 25.º álbum, 60 anos depois de começar no Tropicana, onde dominava o palco como bailarina de cabaré, antes de pôr a melodia em primeiro lugar.
É um dos pilares do filin, etiqueta sonora que, nos anos 50, identificava a aproximação do bolero ao jazz; sagrou-se mestre também no son cubano. Na década de 60, manteve o título honorífico como parte do Cuarteto d’Aida, que a fez contracenar com Édith Piaf ou Nat King Cole, antes de reclamar o protagonismo por inteiro (sem esquecer o álbum colaborativo com Maria Bethânia, de 2006). Talvez tudo isto explique o facto de ser titular do Grammy Latino de Excelência Musical.
Se os anos 80 significaram uma elipse profissional para a artista, pouco importa: é uma nota de rodapé que se autodestrói cada vez que a diva cubana pisa um palco. Acontece já este sábado, no FMM Sines, pelas 22h. A Antena 1 falou em exclusivo com Omara Portuondo, na sua digressão de despedida, à porta de um álbum que não é o derradeiro. Este diálogo com as gerações mais recentes de cantautores latinos — mote também para a sua colaboração com C. Tangana — e outras lendas, como Dionne Warwick, só poderia ter um título: Vida. Algo que abunda em Omara Portuondo, até porque já estão à porta os próximos discos. Sim, no plural.
Antena 1: Na contracapa do seu primeiro disco, Magia Negra, um texto apontava, como “qualidade essencial” em Omara, a interpretação. A interpretação é uma força que se invoca, um músculo que se treina ao longo de décadas, ou algo que transcende as metáforas?
Omara Portuondo: É, realmente, uma qualidade intrínseca a cada artista e intérprete, e deve-se também ao tempo de trabalho de cada pessoa. Como diz, são muitas décadas de trabalho e e de tempo.
Anunciou a digressão atual como a sua despedida do palco, o lugar onde sempre disse ser o mais feliz possível. Balançando o facto de que Omara nunca se duerme en los laureles [dorme à sombra da bananeira] e a exaustão natural da vida de estrada, este adeus é agridoce?
Já é hora de cada pessoa entender qual é o momento certo para realizar uma digressão – que gera alegria, porque levas ao público a tua música ao vivo –, mas também saber que há momentos de fadiga. Este é o momento de fazer uma tournée mundial, entre anos, porque o mundo é grande e não se percorre apenas num ano. Também me tocou a crise da pandemia, a guerra e as regressões económicas, e isso torna-o mais difícil.
Para mim, esta digressão não é um adeus agridoce. Sempre disse à minha família que morreria num palco, contudo, a vida deu uma volta de 180 graus. Prefiro, portanto, continuar a gravar música em estúdio, que espero poder ver, e dedicá-la às pessoas que me amam neste mundo e que se deleitaram com tudo aquilo que cantei, com amor e carinho.
Mariposas, embora preparado antes da pandemia, será um disco eternamente associado a esse momento. Por contraste, o título do iminente Vida, gravado em casa, sugere uma celebração mais desafogada. É um pressentimento errado da nossa parte? E será este o seu último álbum?
Depois de Mariposas, nomeado para os Grammy Latinos e produzido por Yessy Suares, um jovem talentoso, gravei mais dois discos pela editora Egren y Failde. Durante a pandemia, ocorreu ao meu filho Ariel fazer um disco de duetos, que gravámos em minha casa, com escassos recursos e a produção musical de Gaby Moreno, um artista com muito talento. Os artistas convidados para os duetos são Rubén Blades, Susana Baca, Natalia Lafourcade, Gaby Moreno, Carlos Rivera, Raphael, Andy Montañez, Alex Cuba, Amaury Pérez e Dionne Warwick.
Este disco intitula-se Vida e é um percurso pela minha vida; inclui a canção Bolero a la vida, escrita por Larramendi e Gaby Moreno, que foi nomeada para os Grammy Latinos em 2021. Não será o meu último disco. No próximo ano, começo a gravar mais dois projetos e tenho cinco discos já gravados, pelo que haverá mais discos de Omara por muito tempo.
No quadro destes diálogos intergeracionais, como foi colaborar com C. Tangana no tema Te Venero [faixa de El Madrileño: La Sobremesa, reedição do último álbum de Tangana]?
Tangana é um rapaz muito humano, simples e um cavalheiro. Quis colaborar com ele neste tema, pelo que o gravamos. Foi ele quem escreveu este tema e disse-me que tinha gostado muito dele.
A Omara acompanhou intimamente vários tempos e dinâmicas do panorama musical cubano, desde a emergência do filin à ressurgência de Cuba no planetário musical com os Buena Vista Social Club. Em 1967, justificava a sua saída das Las d’Aida com a necessidade de “llenar aquel hueco” [preencher aquele buraco] deixado pela partida de vários cantores cubanos. Sente que é uma missão cumprida?
É uma missão que faço o que a vida me escolheu para fazê-lo. Muitos músicos cubanos continuam a partir e haverá muitos mais, contudo, espero que algum dia possam regressar ao seu país, que haja muito emprego na música cubana. A pandemia afetou bastante e, em Cuba, há uma crise económica. Há pessoas que precisam de trabalho, além de outras realidades, enfim. A vida deu-me essa possibilidade, mas não creio que tenha preenchido uma lacuna daquela época. Coube-me esforçar-me e cumprir com a cultura de Cuba.