1.
Oito pessoas morreram nos incêndios.
Muita gente, demasiada.
Podia falar da história de cada um deles, de cada uma das vidas travadas, dos sonhos que tinham por cumprir, das infâncias difíceis, felizes, inquietas ou pacificadas.
Podia fazê-lo, mas não consigo deixar de ver os olhos tão cheios de futuro de Sónia Melo.
Não consigo deixar de olhar a fotografia em que sorri para a vida, para nós também agora que a conhecemos sabendo que nunca mais a poderemos ver.
2.
A Sónia tinha 36 anos.
E os amigos juravam que àquela miúda nada poderia acontecer. Era a melhor de todos, a mais generosa, a que se sacrificava pelos outros.
Uma pessoa assim tão boa estava imune a qualquer desgraça, os poderes daqui e do outro lado não deixariam que acontecesse, morreria certamente velhinha e sem dívidas aos sonhos.
Teria continuado a ser bombeira voluntária em Vila Nova de Oliveirinha – como poderia deixar de o ser se os bombeiros existem para estar na primeira linha?
Como poderia deixar de ser bombeira se foi ali que conheceu o amor da sua vida; as amigas até gozavam um bocadinho o prato, o Francisco tinha pouco mais de vinte anos, era um menino com menos dez do que ela.
Mas o amor é isto, não escolhe o lugar e a idade, é o que é.
Apaixonaram-se há três anos e o casamento estava marcado para o 28 de julho do próximo ano. Já havia uma lista de convidados e até tinham combinado surpresas nas férias em Cabo Verde.
3.
Sabia lá a Sónia que seria a sua última viagem, as suas últimas férias, os seus últimos planos e sorrisos?
Chegou de Cabo Verde e começaram os fogos.
E ela lá foi.
Pediu para lhe serem alterados os turnos de enfermeira nos dois sítios onde trabalhava e foi apagar fogos.
Peço-te desculpa a ti que me lês, que me ouves todos os dias…
… pelo também desculpa à memória dos outros sete que partiram…
… mas este Postal é para ela, para aquele sorriso de menina feliz e generosa, para a Sónia que era amada pelas pessoas, a que toda a gente acreditava ser indestrutível por ser tão boa, por ter um coração tão grande.
Mas não.
A Sónia morreu nas chamas destes incêndios que nos envergonham.
Não casará no próximo ano.
Não voltará a apagar incêndios ou a vestir a bata de enfermeira, não terá os filhos que ambicionava, não será mãe, avó.
Morreu jovem.
E assim ficará para sempre.
O namorado Francisco, que sobreviveu às chamas e lhe pressentiu a morte ao longe, jamais a esquecerá.
Viva os anos que viver.
Que este Postal seja então para sempre entre os que a amaram.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e RTP Play.