1.
Costuma dizer-se que quando não há assunto o melhor é falar-se de gatos.
Não há afirmação mais injusta pois deveria ser o contrário: há poucos assuntos tão interessantes, simbólicos e metafóricos como o mundo dos gatos e a sua relação connosco.
O Pudim é zarolho e a Glória coxa.
Sempre fizeram a sua vida, sempre mantiveram a sua independência e sempre preservaram uma relação comigo feita de pequenos passos.
Um e o outro são o contrário do que este tempo de rapidez e volatilidade pede.
Não nos dão miminhos por dá cá aquela palha.
Não nos dão nada no imediato, precisam de tempo, de lentidão e de confiança.
2.
São solitários, têm a sua vida, os seus planos próprios. Estão connosco quando querem e não quando desejamos que estejam.
É claro que também tenho os meus truques, quando me chateio da sua independência, quando me atormentam com a sua irritante indiferença, vou à cozinha e abro um patê.
Ficam doidos e simulam o seu afeto até ficarem de barriga cheia.
Depois prosseguem nas suas meditações e fazem-me uma companhia discreta enquanto escrevo, leio ou vejo televisão.
3.
Quando adoeci com Covid, a Glória deitou-se ao meu lado.
E quando fui internado deitou-se no meu lugar da cama, cada vez mais magra, cada vez mais desidratada, moribunda…
…nos 15 dias em que estive internado, não comeu e apenas sobreviveu por que a Ana a alimentou com uma seringa.
Sobreviveu.
E eu também.
Mas quando regressei a casa, não me foi esperar à porta.
Quando melhorei ela não miou ou mostrou o quanto me amava, limitou-se a sair da cama e a voltar à sua normalidade, como se nada fosse.
4.
Os gatos são mágicos.
Uma espécie de passageiros de um outro mundo ou de videntes de um país que não está ao nosso alcance.
Parecem carregar energias, as bruxas boas e más trazem-nos nas vassouras ou a caminho do paraíso dos anjos.
O Senhor Nakata, inventado por Murakami na sua obra prima “Kafka à Beira-Mar”, sabia falar com eles, compreendia a sua língua.
Eu tento fazê-lo todos os dias, mas todos os dias eles mudam o alfabeto e eu tenho de começar de novo.
Texto e programa de Luís Osório
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