1.
Conheci Carlos Paredes quando ele já só podia sorrir.
Em criança tinha estado com ele várias vezes, mas aí não conta, aí os adultos passam pelos filhos dos amigos como vinha vindimada, dão beijinhos e abraços, mas os beijinhos e abraços não são, na maior parte das vezes, vínculos de futuro.
O grande mestre da guitarra portuguesa era amigo do meu pai.
E foi nessa condição, de filho do meu pai, que a Luísa Amaro, sua companheira me desafiou para o ir ver ao Lar Nossa Senhora da Saúde, em Lisboa.
Corria o ano de 1994 ou 1995, por aí.
Fez trinta anos que entrei no seu quarto e ele me sorriu.
Já não falava, mas ouvia música.
E ainda via televisão.
2.
Infelizmente não voltaria a tocar.
A doença neurológica deixou-o dependente de cuidados durante nove anos.
Entrou no lar em 1993 e partiu no verão de 2004.
Quando a notícia chegou aos ouvidos dos portugueses alguns julgavam que já tinha morrido.
Acontece-nos muito, não é?
Deixamos de aparecer e morremos antes de morrer.
Carlos Paredes, o génio mais humilde que este país já conheceu, a partir de certa altura foi para dentro. Tinha os olhos abertos, mas já não via, deixara de sorrir.
Mas Luísa Amaro esteve sempre à beira da sua cama.
Caminhou para o lar todos os dias durante nove anos.
3.
Carlos convidara-a para tocar com ele.
Luísa acabara de fazer 25 anos e era uma enorme esperança da guitarra portuguesa. Católica e empenhada na carreira apaixona-se por Paredes depois do primeiro espetáculo que fizeram juntos.
Viveram dez anos dedicados um ao outro.
E depois Luísa viveu mais dez anos totalmente dedicada a Carlos Paredes.
Luísa Amaro, é justo que se diga, sofreu na pele o preconceito de uma sociedade que condenava as mulheres a serem párias.
Ouviu de tudo e ouviu até de alguns músicos – que estava com Carlos por interesse, que desejava aproveitar-se do seu nome e projeção, que não tinha direito a nada se ele morresse.
4.
Só que Carlos Paredes caiu numa cama e deixou de ser falado.
E ouvido.
Mas Luísa Amaro caminhou todos os dias para aquela cama onde se sentava, onde punha música, onde tocava para ele as partituras que compunha, onde lhe contava de temas domésticos, onde esperou até ao último minuto que voltasse a sorrir.
Nesta última semana antes do 25 de Abril quis recordar Paredes.
E homenagear essa extraordinária compositora, guitarrista e mulher de Carlos Paredes a quem voltarei a aplaudir no meu monólogo na Figueira da Foz.
Texto e programa de Luís Osório
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