1.
Quando o pai morreu não conseguiu chorar.
O velho homem chamava-se José, era pescador e pai de cinco filhos, o mais novo era ele…
…o que não conseguiu chorar.
O que guardou as lágrimas para o momento em que ficou sozinho na campa, o instante em que agradeceu ao pai por o ter deixado ir, por não o ter obrigado a ser um caçador de peixes ou alguém previsível e sem silêncios na cabeça.
2.
A mãe chamava-se Maria e dominava a casa e as contas.
Maria como todas as mulheres da família
E o pai José como os homens da família.
Todos religiosos, todos pobres, todos pescadores e a maioria analfabetos.
A mãe da mãe, também Maria, foi a pessoa da sua infância. Iniciou-o na poesia das cores, das montanhas e dos mares, “lia-lhe” as histórias que lhe tinham contado sem que ela soubesse ler.
3.
Nasceu em Machico o filho mais novo de José e Maria, o que veio fora de prazo, o mais novo a quem chamaram Tolentino.
Tolentino como segundo nome.
José Tolentino de Mendonça.
Que com um ano viajou de barco ao colo da mãe. O pai fora para Angola ganhar o dinheiro que não tinha em Machico, os filhos foram lá ter mais a mãe Maria, uma viagem no Príncipe Perfeito, navio dos foragidos do destino.
Ficaram vários anos em Angola, regressaram durante a descolonização. E Tolentino chorou aí pela primeira vez, sem ressentimento, sem dificuldade de aceitar, mas também sem amigos, sem a única casa que conhecia, sem garantia de que não seria pescador como os outros.
4.
Aos 11 anos quis o seminário.
E nunca deixou de admirar os que perseguem.
Os artistas, os poetas, os realizadores, os atores e encenadores, os que procuram, os que se perdem para melhor se encontrar, os que se entristecem e deslumbram.
Como ele é, como ele sempre foi.
Antes e depois do seminário.
Como ele quando se despediu do pai José num encontro de silêncio na campa onde o sepultaram – numa conversa com Anabela Mota Ribeiro, Tolentino confessou-lhe de dois gatos que, vindos do nada, lhe fizeram companhia nesse silêncio, como se fossem um milagre.
5.
José Tolentino de Mendonça, filho do pescador José e de Maria, irmão de quatro mais velhos, é um dos mais influentes cardeais do Vaticano.
Alguns juram ser o mais próximo de Francisco, o mais humilde, culto e tolerante de todos os que um dia serão chamados a rezar perto do corpo do Papa.
Quem sabe se, nesses dias de despedida e fumo branco, os dois gatos lhe voltarão a aparecer.
Quem sabe se não lhe segredarão o que ainda não está em nenhum livro secreto.
Texto e programa de Luís Osório
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