1.
Preciso de te contar a história do homem mais bondoso que passou pela minha vida.
Do mais ingénuo também. Ingénuo, encantado, amigo e talentoso na escrita, na fotografia, no requintado humor.
Era filho de duas personagens maiores do jornalismo – o pai chamava-se Manuel Beça Múrias, figura de referência de uma geração que trabalhou em ditadura e em liberdade, e Maria João Beça Múrias, talvez a pessoa que mais contribuiu para a profissionalização do documentarismo nas redações.
2.
Manuel e Maria João tiveram dois meninos e duas meninas.
O Pedro era o rapaz mais velho e o que, desde o primeiro momento, quis ser como o pai.
Ainda menor saia para fotografar e escrevia na esperança de que o pai lesse e se orgulhasse.
Conheci-o com vinte e poucos anos. Ele era editor da Notícias Magazine e convidou-me para a equipa.
Trabalhámos juntos em vários projetos e achava que o conhecia melhor do que a palma das minhas mãos.
Fui seu chefe depois de ele ter sido meu chefe.
Mas a questão não se colocava pois éramos demasiado amigos para que existissem hierarquias.
3.
Quero contar-te da história da pessoa mais bondosa que conheci.
O que se perdia nas ruas por querer conversar com um sem-abrigo, o que se atrasava por causa de um pombo com uma asa quebrada, o que se esquecia de compromissos por ter reparado que havia uma pessoa triste dois dias seguidos no mesmo banco de jardim.
E escrevia maravilhosamente.
Eu dizia-lhe isso quando lhe dava na cabeça…
… “Pedro, não te distraias mais. Podes ser o que quiseres, não queiras ser um jornalista pela metade, deixa de ser samaritano e de acreditar em tudo o que te dizem”.
Acenava-me que sim.
Mas na manhã seguinte tornava a acreditar em toda a gente com os seus olhos de menino encantado e as suas unhas roídas até ao sabugo.
4.
Quando lhe foi diagnosticado um cancro o Pedro trabalhava comigo no Rádio Clube Português.
Morreu com 47 anos.
Curou-se do cancro e tombou com um ataque cardíaco.
Já passaram quase 15 anos, mas ele continua na minha cabeça.
Ele e a memória do seu funeral.
Um mar de pessoas que não se conheciam umas às outras.
Gente que foi ao seu encontro quando soube que partira, os que encontrava nos bancos de jardim, os sem-abrigos, a prostituta que tentou salvar, o presidiário que tentou reintegrar, o jornalista a quem levava pelo braço aos alcoólicos anónimos, a miúda a quem deu a mão para a tirar do vício da heroína.
O Pedro Múrias partiu muito jovem.
Era um anjo e eu não o soube reconhecer.
Texto e programa de Luís Osório
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