1.
O mundo está doido.
Uma loucura certamente provocada por um vírus bem pior do que o da pandemia, um mal impossível de resolver com vacinas ou tratamento hospitalar.
Sei que é humano desejarmos o que não temos, efabularmos sobre o que não conhecemos, termos saudades do que não vivemos.
Freud dizia que todas as memórias são falsas. Mesmo as que juramos ser reais são fruto do nosso talento de maquilharmos a verdade.
2.
Durante muitos anos acreditei que a primeira pessoa a quem dei um beijo na boca era deslumbrante.
Tínhamos nove anos e eu nunca mais a vi.
Há uns tempos um colega da primária mostrou-me a fotografia de turma e não quis acreditar – como era possível que eu tivesse arredondado a verdade daquela maneira? O meu primeiro beijo foi mágico, mas ela era o contrário do que imaginava.
3.
Fez-me lembrar a loucura por Salazar.
Há até miúdos a falarem do que ouvem em casa.
Que ele era isto e aquilo e que os políticos de agora não são feitos da mesma matéria.
Que era genial, único, inteligente, perspicaz, patriota, incorrupto.
Que salvou o país, que éramos grandes, que os cofres estavam cheios, que se dava ao respeito, que havia autoridade, que tínhamos elites e colónias, que não existiam bandidos, droga e estrangeiros a roubar os empregos aos portugueses.
4.
Chegamos a uma livraria e há dezenas de títulos com o homem na capa – o outro retrato de Salazar, o Salazar confidencial, o herdeiro de Salazar, os anos de tensão, a incrível história de Salazar….
Só em 2024 soubemos que a Torre do Tombo vai abrir o acesso aos ficheiros digitalizados.
Que é desta que o Museu Salazar será inaugurado.
Que há 17 ruas António Oliveira Salazar
Que existem petições para que a Ponte 25 de Abril se volte a chamar Salazar.
Isto para não falar da intervenção de Bordalo II na campa de Santa Comba e do livro que diz ter provado que a cadeira de Salazar nunca existiu.
Só falta aparecer quem jure que está vivo e de saúde apesar de ter 135 anos, um milagre que levará à justa santificação do António, o verdadeiro Santo António.
Ou então a sua cara decorar cuecas para homens que sejam verdadeiramente patriotas.
5.
Não há paciência para tanto saudosismo.
E para tanta ignorância sobre Salazar e o Estado Novo.
Que sejam os ricos a defendê-lo, ainda posso compreender. Mas ouvir gente pobre a falar de Salazar como se este fosse a Santinha da Ladeira é ridículo.
Que entrem na máquina do tempo e recuem 80 anos.
Desemparem a loja e batam com os costados no Portugal pobrezinho, mas honrado. Talvez a mania lhes passe muito rapidamente.
Texto e programa de Luís Osório
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