1.
No ano em que comemoramos os 150 anos do Zé Povinho, personagem desenhado por Bordallo Pinheiro, continua a fazer a mesma pergunta:
– o que é isso de ser português?
O que nos identifica de imediato, o que nos distingue, o que nos envergonha ou orgulha?
Bem, há múltiplas definições, diversos olhares, mas para mim, patriota convicto, o que nos distingue e identifica é o paradoxo, a contradição, é a nossa capacidade de ser uma coisa e o seu contrário.
2.
Somos fado e temos este Sol.
Somos os que partiram à conquista e descoberta e os que ficaram a dizer mal dos que partiram.
Somos generosos e egoístas.
Corajosos e cobardolas.
Somos os que fizeram uma revolução em que as únicas quatro mortes aconteceram por um quase engano.
Somos racistas, mas foi graças a nós que nasceu a mestiçagem e o crioulo.
3.
Mas mais.
Somos mais frágeis do que os catalães e bascos, mas fomos nós que sobrevivemos.
Somos orgulhosos, mas não protegemos o que é nosso.
Somos os que vão de férias para as Caraíbas sem conhecer os Açores ou o Gerês.
Somos os que se comem vivos dentro de casa e os que se defendem ate à morte se estiverem no estrangeiro.
Somos os são capazes de dizer bem num dia e odiar no outro.
Os que têm sempre de dizer “mas” depois de fazer um elogio.
Somos amigos dos nossos amigos, mas nem todos os dias torcemos pelo seu sucesso.
Somos Fernando Pessoa, mas não lemos Fernando Pessoa.
Não lemos Saramago, mas temos opinião sobre ele.
Imigramos para fora, mas dizemos mal dos que emigram para dentro.
Somos simpáticos e desconfiados.
Somos católicos, mas não praticamos muito.
Temos um passado glorioso, mas não falamos do passado.
Temos orgulho e vergonha ao mesmo tempo.
Somos otimistas, mas vemos o copo meio vazio.
Somos sedutores, mas baixinhos e sabujos.
Fomos destinados a perder, mas sobrevivemos.
Tudo nos empurra para baixo, mas na História ganhámos mais do que a maioria.
Somos pobrezinhos e os que nasceram com a arrogância dos predestinados.
Somos pequeninos, mas também a Pátria de Camões, Cristiano, Paula Rego, Maria João Pires, Lobo Antunes, Guterres, Tiago Rodrigues, Siza, Mourinho, Sobrinho Simões, Elvira Fortunato e Joana Vasconcelos.
Somos uma coisa e o seu contrário.
Somos esta praia e esta preguiça.
Esta montanha e esta aridez.
Estes rios e esta interioridade.
Esta esperança e este desânimo.
Somos o que ainda está por nascer e o Adamastor que nos rebentou com a vida.
Somos únicos e tratamo-nos tão mal.
Tenho orgulho de ser português.
Sem mais, sem reticências, sem dúvidas, sem vontade de ser outra coisa.
Mas é difícil sermos o que é luz e sombra.
O que é buraco e megalomania.
O que é condenação, martírio e vitória.
Só podemos ter sido inventados por quem não é daqui.
Não achas?
Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, YouTube e RTP Play.