1.
Não vou a velórios ou funerais.
Não o faço a não ser que seja absolutamente impossível deixar de ir.
Por isso, não faço julgamentos de valor sobre os que decidem ficar num lugar de conforto.
No meu caso foi demasiado sofrimento com doenças, mortes, medo, sobrevivência. Uma cobardia minha esta coisa de pôr na agenda e falhar quase sempre, um travão de mão que utilizo para fugir dos fantasmas que me espreitam.
2.
Morreu Maria da Nazaré, uma das grandes fadistas da história. Também uma das mais discretas e, sem dúvida alguma, uma das pessoas mais generosas que conheci.
Quando aparecia impressionava-me sempre – como se explica que alguém tão frágil pudesse abrir a boca e ser tão poderosa?
Nazaré era da noite, das casas de fado, dos bairros populares apesar de ter nascido no Barreiro e vivido tantos anos em Campo de Ourique, bairro que misturava pipis e vagabundos.
Era da noite e era fado.
Carisma e destino, amor e perda, traição e esperança.
Sim, era fado em estado puro.
3.
Ajudava todas as pessoas que conseguia.
Parecia ter um radar de pressentimento.
Se desconfiava que alguma coisa não batia certo, Maria da Nazaré não descansava.
Não há ninguém no mundo do fado que possa dizer o contrário – ela era dos outros e por tanto ser dos outros esquecia-se de si própria.
Infelizmente, se tivesse sido distante, egoísta e menos discreta teria sido aplaudida na morte como uma das melhores de sempre.
4.
A minha família deve muito a Nazaré.
No inferno por que passou o meu pai, nos longos internamentos, nos comas, nos gritos de dor, nas desilusões, ela esteve presente.
Não faltava a quase nenhuma visita.
Apoiou o amigo e abraçou a minha avó Alice, a mãe do meu pai. Abraçou-a mais do que outra pessoa qualquer.
Nazaré, desculpa-me por não ter estado.
Sou demasiadamente imperfeito.
Ao contrário de ti que soubeste tornar o mundo melhor em cada passo que deste, em cada bocadinho do que foste.
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