1.
Fui à inauguração de uma exposição na Santa Casa da Misericórdia e reencontrei a Ana.
Sempre que nos vemos abraçamo-nos como se pudesse ser a última vez.
Abraços de reconhecimento a um anjo disfarçado de mulher, um anjo que Deus destacou para trabalhar no inferno.
2.
Ana Campos Reis é uma enfermeira mítica.
Reformou-se e raramente regressa aos lugares que dela dependeram, mas quando volta…
…quando volta há fogo de artifício no olhar das pessoas que com ela trabalharam.
A Ana foi tudo para muitos penitentes.
Deu vida a quem já estava coberto de morte.
Foi amparo para tantos que não sabiam como chegar ao fim do dia.
Moveu mundos e fundos para que os corpos encontrados, e que ninguém reclamava, pudessem ter um funeral e uma última despedida.
Fundou a primeira casa que acolheu doentes com SIDA, na altura em que a SIDA era a peste ou a lepra de um outro tempo – a minha família deve-lhe muito, o meu pai amava-a profundamente, amava-a tanto que aceitou que houvesse missa de celebração para honrar o seu desejo… o meu pai era, como adorava dizer, ateu, graças a Deus.
3.
Um dia perguntei a Ana Campos Reis se tinha existido alguma estória que a tivesse influenciado a dedicar a vida aos que mais necessitavam.
Escolheu não um, mas três episódios.
Posso contar-te?
No primeiro, depois de conseguir alojar um homem na Mitra de Lisboa, informaram-na que ele nunca dormia na cama que lhe estava destinada, esta aparecia sempre feita com os lençóis por usar.
A enfermeira Ana resolveu aparecer durante a madrugada. Entrou-lhe no quarto e percebeu que, afinal, o senhor estava deitado… debaixo da cama.
Aquele homem não sabia sequer como fazer para dormir numa cama, achou que não era para ele, que o seu lugar era debaixo.
4.
No segundo episódio, a jovem enfermeira ficou com um bebé nos braços. Um bebé resgatado na rua, um bebé que já não conseguia chorar de tão desnutrido, de tão cansado que estava. Ana embalou-o e quando lhe ia mudar as fraldas viu dezenas de larvas a entrarem e a saírem do seu corpo.
O terceiro e último episódio é uma pergunta e uma resposta. Ana Campos Reis perguntou a um homem muito pobre o que mais gostaria de ter, se apenas pudesse escolher um único presente. O homem muito pobre respondeu-lhe que escolheria o passe social para poder andar de autocarro e ser livre.
É isto.
Um anjo no inferno.
Porque, sabes…
… há inferno.
Mas há anjos.
Como ela, a mítica enfermeira da Misericórdia de Lisboa.
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