Depois de primeiras aventuras ainda nos anos 50, de passos determinantes dados mais adiante pela geração que hoje associamos ao programa de televisão que lhe deu maior visibilidade (a “Jovem Guarda”), de importantes sinais de revolução que chegaram, já em finais de 60 com os tropicalistas, a emergência de um samba rock (via Jorge Ben ou Erasmo Carlos, entre outros) e de primeiros ensaios em terreno funk (com o regresso de Tim Maia após etapa em Nova Iorque), a história da música elétrica no Brasil conheceu, em 1973, um novo momento que juntava a uma síntese das conquistas entretanto já realizadas uma visão profundamente vincada por uma busca de identidade cultural. Fruto direto das visões que figuras-chave do tropicalismo (como Caetano Veloso, Gal Costa ou Gilberto Gil) haviam levantado na reta final da década anterior, movidos entretanto por estímulos de um rock que não era já o psicadelismo entretanto também experimentado pelos Mutantes, um grupo de amigos paulistas começou a atuar no mítico bairro do Bexiga (na verdade uma zona sem expressão administrativa que se estende do segmento nordeste de Jardins à Bela Vista). Um corpo de canções começa a nascer, mas João Ricardo, timoneiro e principal força criativa do grupo (nascido em 1949 em Arcozelo, perto de Ponte de Lima, filho do poeta e jornalista português João Apolinário que estava a viver exilado no Brasil desde 1963, e ao qual a família se juntou), sabe que não tem ainda a bordo a voz certa. Uma amiga comum levou-os então a conhecer um jovem cantor natural do Mato Grosso do Sul que por aqueles dias vendia as suas criações artísticas na muito central Praça da República. Ney de Souza Pereira, que (como Ney) tinha já interpretado canções na banda sonora de “Prá Quem Fica… Tchau” (fixadas num EP de 1971), e agora já sob o nome artístico que carregava a sua natural genética geográfica (e cultural), juntou-se ao fundador João Ricardo e a Gerson Conrad, formando o núcleo da formação que toma por nome uma referência linda numa tabuleta de um armazém em Ubatuba (cidade do litoral norte do estado de São Paulo). Assim nasciam os Secos & Molhados que, depois de ensaios, jornadas de trabalho e primeiras datas ao vivo na célebre Casa de Badalação e Tédio, criando um pequeno fenómeno que chama a atenção de um dos responsáveis pela Continental, editora que tinha expressão editorial significativa mas sem repertório na linha do que então o grupo propunha. O caminho estava aberto…
Em maio de 1973, numa sucessão de sessões de gravação nos estúdios Prova, em São Paulo, ao longo de duas semanas de trabalho, o álbum de estreia dos Secos & Molhados ganhou forma. João Ricardo assegurou a direção musical, cabendo a produção ao próprio Moarcy du Val, que apresentara o grupo à editora. Além do trio nuclear as sessões contaram com outras contribuições, entre as quais a do baterista Marcelo Frias que, apesar não ter chegado nunca a integrar a formação oficial dos Secos & Molhados, colaborava frequentemente com o grupo e aceitou inclusivamente ser um dos rostos na foto que depois surgiu na capa do álbum, todos eles assentes em bandejas, entre broas, enchidos, cebolas, feijão e vinho…
Se a capa mostrava uma sugestão de algo diferente e até mesmo provocador, a música confirmava depois os aromas e sabores que aquela imagem sugeria. Apesar da relativa escassez de meios – uma mesa de quatro pistas terá sido usada nas gravações – as canções fixadas no álbum de estreia dos Secos & Molhados revelavam cruzamentos, referências e pontes que aliavam aos alicerces da música elétrica todo um quadro de marcas que escutavam ecos profundos da cultura brasileira, captando inclusivamente heranças do vira português (“O Vira”). Seguindo o desbravar de ideias lançado pelos tropicalistas, a estimulante carga transgressiva não se esgotava nas formas e nos sons, vincando nas letras o caldeirão de visões e demandas que ali convocavam. De crenças e mitologias a reflexões pessoais, olhando a guerra, questionando o futuro, saboreando a carga poética das palavras e os jogos subliminares que ali se desenham, o disco juntava letras expressamente criadas para as canções, entre elas o “Sangue Latino” de Paulinho Mendonça ou o “Vira” de Luhli (a amiga que lhes dera a conhecer Ney) a também poemas como a “Rosa de Hiroxima” de Vinicius de Moraes, a “Prece Cósmica” e “As Andorinhas” de Cassiano Ricardo, a “Mulher Barriguda” de Solano Trindade ou o “Rondó do Capitão” de Manuel Ricardo, sobretudo moldadas pela música de João Ricardo. Peça fulcral em todo o edifício desafiante aqui apresentado, a voz aguda de Ney Matogrosso, fugindo a qualquer regime de convenções, rematava definitivamente o jogo então invulgar de caminhos que aqui se juntavam num ponto só.
No fim todo este quadro de ambiguidades, vincado pela própria imagem andrógina do grupo (em sintonia com o que então acontecia em terreno glam rock), fez de “Secos & Molhados” um statement artístico ousado e único que, à partida, poderia ter tudo para cativar melómanos atentos e espíritos orientados pelas vanguardas do pensamento e comportamentos. Todavia, e apesar do tempo político e social que então se viva num Brasil sob a presidência de Emílio Médici (o terceiro chefe de estado do período da ditadura militar, já sob vigência do célebre Ato Institucional Número 5 promulgado pelo seu antecessor e sob o qual surgira a censura prévia na música, cinema, teatro e televisão), o álbum gerou um inesperado fenómeno de sucesso fulminante. Tanto que os 1500 exemplares inicialmente prensados esgotaram numa semana, com as vendas a atingir o patamar das 300 mil cópias em dois meses, atingindo a marca do milhão em menos de um ano.
Sob o impacte do primeiro álbum o grupo gravou um sucessor em 1974 ao qual deu o mesmo título e em cujo alinhamento surgiu “Flores Astrais”, outro dos clássicos da banda. Tensões internas ditaram contudo um final precoce, tendo Nem Matogrosso iniciado um percurso a solo com um álbum de estreia com “Água do Céu – Pássaro” (1975), herdeiro natural das visões experimentadas no período em que integrou os Secos & Molhados. Gerson Conrad também partiu rumo a várias experiências, sobretudo em banda ou em colaborações. João Ricardo, apesar de ter também trilhado um caminho a solo, voltou a reunir (com outras formações) os Secos & Molhados, em sucessivas vidas que geraram mais uma mão-cheia de álbuns, o mais recente, “Barulho de Rock e Gesta”, datado de finais de 2019.
A história dos Secos & Molhados, na sua encarnação original, com expressão em discos de estúdio editados entre 1973 e 1974 é o ponto de partida para o mais recente episódio do “Gira Discos” pelo qual passam ainda ecos do Brasil daqueles tempos, escutando aí nomes como os de Rita Lee (então acompanhada pelos Tutti Frutti), Tom Zé, Jorge Ben Jor ou Chico Buarque.
Texto de Nuno Galopim
O “Gira Discos” é um programa semanal de Nuno Galopim na Antena 1, transmitido nas noites de quinta para sexta depois das notícias da meia noite. A versão diária do “Gira Discos” escuta-se de segunda a sexta pelas 8.55, integrando o “Programa da Manhã”.