1.
A Companhia de Teatro Praga viu nela o que poucos conseguiram.
E Marina foi fotografada como se tivesse encarnado Catarina Eufémia, a Passionária ou A Mãe de Gorki.
Havia no seu rosto uma marca de terra, de campos por lavrar, de revoluções eternamente adiadas, de derrotas milenares, de mulheres sempre puxadas para o escuro, para a invisibilidade, para o trabalho de casa, para o sexo sem prazer.
Naquela fotografia de Carlos Pinto para os magníficos “Praga”, Marina Mota não era a que nos habituámos a ver nas revistas à portuguesa, nos programas de humor popular, nos fados das vielas e na memória de um Parque Mayer que não chegou a conhecer no seu tempo de ouro, o Parque Mayer de Belarmino e dos marinheiros à caça de engate e cerveja, das coristas e lantejoulas.
2.
Sabes de que fotografia te falo?
Marina Mota parece outra ou então nenhuma fotografia ficou tão próxima do que é.
Vê-se o tempo que passou, vê-se a dificuldade do bairro onde nasceu, as correrias de criança em Alcântara, a sopa na mesa, a sobremesa nos dias especiais…
Vê-se as casas de fado e o fumo.
Vemos também os prémios que recebeu em criança, dizia-se no bairro que ela seria grande, que um dia a todos levaria numa viagem de volta ao mundo com gente a venerá-la em todos os continentes.
3.
Marina Mota tem já 61 anos.
Há gente elitista que nunca quis nada com ela, que a desdenha, que não a deixa representar em alguns lugares, que a trata como se ela fosse menor.
Ouviu de tudo na vida.
Que a sua voz era perfeita para a malta que vinha em excursão da aldeia, que o seu talento e improviso eram excelentes para trazer os barrascos ao teatro…
… ela nunca quis saber.
Saía à rua e era abraçada.
E fazia o seu papel, risonha, espalhafatosa, ao serviço de um povo que sempre a idolatrou.
Amada pelo povo, esquecida pelas elites.
4.
Cláudia Jardim e André Teodósio do Teatro Praga perceberam tudo.
Desafiaram-na a entrar numa Revista que não era bem uma Revista, desafiaram-na a ser mais próxima do que tem dentro.
E ela aceitou ir com o que carrega, com todas as falhas e angústias.
Marina deixou de cantar, mas a voz sobressalta-se em cada tentativa de regresso.
Deixou de chegar acompanhada a casa, mas o corpo sobressalta-se com cada hipótese de recomeço.
5.
Marina Mota é magnífica.
Se fosse espanhola seria uma estrela de Almodóvar.
Mas ela é de Alcântara e de Alfama, do fado e do Parque Mayer, dos aplausos e dos abraços, das anedotas brejeiras e das lágrimas que lhe vemos em cada gargalhada com que nos distrai e engana.
Se eu fosse encenador ou realizador convidava-a para representar a personagem mais trágica que conseguisse encontrar. Levava-a ao Teatro Dona Maria e ao São João, a Avignon e à América.
Levava-a a ser o que escondeu toda a vida.
Desmascarava-a na sua mentira e ela poderia, finalmente, dar a volta ao mundo com as amigas que corriam com ela na infância difícil do bairro onde se cantava.
Texto e programa de Luís Osório
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