1.
Caro Sérgio Conceição
Certamente que muita gente ao longo da sua vida o aborreceu com aquilo que me aborrece a mim…
.. há sempre quem nos apareça cheio de certezas sobre o que é melhor para nós.
E para si, que perdeu os pais na adolescência e que teve de sobreviver sem rede ou horizontes, ainda deve ser mais complicado.
Era só o que faltava aparecer gente com falinhas mansas ou juízos de valor sobre o que deve ser ou não ser a sua vida.
2.
Em Ribeira de Frades, lugar onde nasceu de uma família com muitos irmãos e onde muitas vezes o tacho da sopa se disfarçava com água, ainda hoje se fala da sua capacidade, do seu coração, das ajudas que dá a este ou aquele amigo de infância.
Não há ninguém que seja capaz de dizer que o Sérgio não é uma pessoa maravilhosa.
Sabemos isso.
Da solidariedade, da devoção a Deus, da preocupação com os mais pobres e com os que passam dificuldade.
Sabemos mesmo isso, Sérgio.
Mas permita-me que lhe recorde a Parábola dos Talentos. Sendo simplista, e peço-lhe desculpa por isso, é o ensinamento de Jesus que obriga à responsabilidade de respeitar os talentos com que se nasce.
3.
É aí que quero chegar.
O Sérgio já chegou muito para lá do que parecia escrito para si. A larga maioria de nós não alcança tantas estrelas, como jogador ou treinador conseguiu feitos extraordinários.
Se morresse amanhã, e longe vá o agoiro, já teria feito muitíssimo.
No entanto, acredito que os seus talentos estão ainda aquém do que atingiu.
Como treinador é capaz de mobilizar como ninguém, prepara as suas equipas com coragem e inteligência, é perspicaz e quando está menos carregado e sombrio é dos que melhor comunica.
Só que alguma coisa o puxa para a sombra.
Talvez ninguém lhe diga isto, mas algumas coisas que faz provocam pena e até vergonha alheia.
Como é possível que alguém com talentos tão esmagadores seja capaz de incendiar Roma quando alguma coisa não lhe corre de feição?
Como é possível tanta raiva, tanto desequilíbrio, tanta agressividade?
Como foi possível entrar em campo para falar com um árbitro de um jogo de miúdos de oito anos, um jogo em que participou o seu mais pequeno?
Como é possível fechar tantas portas quando a vida é feita do contrário? Sobretudo para quem nasceu com a possibilidade de nos provar que há sempre portas por abrir, que o milagre e o mistério está no bem e não na raiva, no ressentimento, no mal?
Bolas, Sérgio.
Como é possível não decidires domar os fantasmas que tens dentro de ti?
Se o conseguires não será a coisa mais difícil que tiveste de fazer na vida.
Deves isso aos talentos com que nasceste.
E também aos teus pais e à família que é tudo para ti – e a esse craque que também pode ser tudo, o Francisco que ferve em pouca água e que também, como tu, pode ser tudo se não continuar a oferecer trunfos ao vento e à tempestade.
Texto e programa de Luís Osório
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