O segundo episódio que o programa Duas ou Três Coisas dedica aos telediscos aponta azimutes de atenção a seis experiências de diálogo entre a música e o cinema de animação.
A-ha / Take on Me
1985
Realização: Steve Barron
O segundo teledisco criado para Take on Me, dos noruegueses A-ha, é um caso exemplar de como o vídeo se tornara uma peça capaz de alavancar a carreira de uma canção para além do que o simples ‘airplay’ em rádio conseguia fazer por esses dias. Depois de uma primeira edição em 1984 (com uma outra mistura e um primeiro teledisco que não teve impacte algum) e de uma segunda edição (já com a sonoridade que todos depois conheceriam), a canção parecia votada ao insucesso. Coube então ao teledisco o papel de a transformar num êxito planetário, revelando não só a imagem de uma banda então sobretudo talhada ao mercado ‘teen’, como um diálogo entre imagem real e animação. Com um narrativa que decorre em paralelo entre o mundo real e os quadradinhos de uma banda desenhada, o teledisco arrebataria seis prémios nos MTV Video Awards de 1986.
Peter Gabriel / Sledgehammer
1986
Realização: Stephen R. Johnson
Em meados dos anos 80 nem só os mais jovens talentos emergentes estavam a encarar o teledisco como mais do que uma mera ferramenta promocional, havendo vários casos de veteranos que encararam a sua produção como parte determinante da expressão total das suas canções. Um desses exemplos é o teledisco que acompanhou o primeiro single extraído do álbum So, de Peter Gabriel. O vídeo usa técnicas de animação ‘stop motion’, criadas por uma longa sucessão de fotografias de objetos reais. Muitas horas passou Peter Gabriel por debaixo de um vidro sobre qual iam sendo dispostos e movimentados os objetos e formas que depois geraram a ilusão de imagens em movimento. O teledisco assinalou a primeira colaboração entre o músico e o realizador, que meses depois criaria o vídeo para Big Time. A produção contou com a colaboração dos estúdios da Aardman.
Björk / I Miss You
1995
Realização: John Kricfalusi
A música de Björk é toda ela indissociável de uma metódica transfiguração dos corpos. Há na sua obra uma sensualidade que não é exactamente “erótica”, antes de desafio às fronteiras do corpo, seja com as máquinas (veja-se All Is Full of Love), seja com os elementos naturais (todo o seu trabalho neste século XXI, desembocando no álbum Fossora). No caso de I Miss You, canção do seu segundo álbum de estúdio (Post), a animação serve para montar um pequeno e delicioso espectáculo de movimento e cor: a ambiência primitiva de fábula cruza-se com uma alegria dançada que tem qualquer coisa de imitação paródica de um musical dos tempos clássicos de Hollywood.
Gorillaz / 19-2000
2001
Realização: Jamie Hewlett + Pete Candleman
A história do relacionamento do cinema de animação com a música gerou a criação de um novo tipo de artista: a cartono band. E um dos mais célebres exemplos de uma banda cuja expressão visual era apenas um desenho animado é o dos Archies, “criadores” do célebre Sugar Sugar, em 1969. Na viragem do milénio a ideia de criar uma cartoon band entusiasmou Damon Albarn (a voz dos Blur) e o seu amigo desenhador Jamie Hewlett. A ideia acabou por gerar os Gorillaz, apresentados então através de telediscos que não só acompanhavam as canções como sugeriam narrativas e definiam o perfil de cada um dos “elementos” do coletivo, ou seja, as personagens do desenho animado. Com o tempo o grupo evoluiu para juntar à animação uma expressão “ao vivo” em palco e, duas décadas depois, continua ainda a ser uma força ativa num espaço de diálogo entre a canção pop, a cultura hip hop e outras mais expressões do nosso tempo.
Madonna / Love Profusion
2004
Realização: Luc Besson
Na trajectória criativa de Madonna, o álbum American Life é, por certo, um dos que de forma mais incisiva assume a condição de panfleto autobiográfico recheado de contrastes — da visão implacável do imaginário “made in USA” (na canção-título) até à amargura da auto-paródia (há mesmo um tema intitulado I’m So Stupid). Love Profusion é a canção de uma felicidade transparente, porventura efémera, mas sem culpa, remorso ou ressentimento. As filmagens foram em ziguezague: uma parte na Califórnia, na Warner Bros., outra em Paris, na EuropaCorp (o estúdio criado por Luc Besson). A sua encenação combina a imagem de Madonna com um cenário animado capaz de nos fazer acreditar na harmonia de uma natureza virtual.
The Strokes / Ode to the Mets
2020
Realização: Warren Fu
Ode to the Mets encerra o alinhamento do álbum The New Abnormal num tom elegíaco que não é estranho a outros momentos da discografia de The Strokes (lembremos esse tema emblemático que é Is This It). Rezam as crónicas que a canção nasceu do desejo de Julian Casablancas em evocar um desaire da equipa de baseball dos New York Mets, acabando por se transformar numa colagem de memórias de Nova Iorque. De tal modo que o realizador Warren Fu convocou oito criadores de animação para desenhar os capítulos do respectivo teledisco. O resultado é uma fascinante colectânea de histórias de sedutora complementaridade que, para lá da sua fidelidade ao espírito da canção, dá origem a um pequeno monumento visual — faria todo o sentido no grande ecrã de uma sala de cinema.