1.
Há muitos anos fiz uma viagem de carro com D. Duarte.
Era um jovem jornalista e vivi um dia inesquecível.
Encontrámo-nos no Chiado e fomos num automóvel guiado pelo seu motorista ao Paço Ducal de Vila Viçosa, sede histórica da Casa de Bragança.
Pudemos conversar sobre o país e a Monarquia, os costumes e a sua empenhada intervenção pública por Timor.
2.
Recordo a viagem.
E também a sua simpatia, o à vontade com que andava nos longos corredores do Palácio e algumas respostas desabridas, quase loucas, manifestamente fora da realidade.
Passaram mais de três décadas.
E o mundo ficou de cabeça para baixo.
Morreram os protagonistas da altura e partidos políticos que achávamos imortais, renasceram movimentos racistas e antidemocráticos, surgiram homens providenciais que parecem robôs do mal, nos Estados Unidos a liberdade está por um fio, a Inglaterra sacrificou a sua relação com a Europa, as redes sociais trouxeram liberdade e caos, o jornalismo está ferido de morte e a amoralidade cresce como imparável erva daninha.
3.
Acabo de ler a notícia de que Duarte celebrou 30 anos de casamento com Isabel.
E voltei à viagem de carro para Vila Viçosa.
Ao que pensei na altura, à certeza do anacronismo de uma Monarquia cujo herdeiro me pareceu uma criança grande e deliciosamente ingénua.
4.
Trinta anos depois já não penso assim.
Sou republicano e continuo a defender que não é possível existirem famílias beatificadas pela lei dos homens, mas confesso que, nos tempos que correm, tempos em que a identidade do país está a ser afogada num charco de mediocridade…
… confesso que olho para aquele homem anacrónico e vem-me à cabeça que a Monarquia talvez não seja um mal absoluto.
Afinal, ser conservador é hoje quase um ato revolucionário.
Já estive mais longe de dar vivas ao rei.
Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, YouTube e RTP Play.