1.
Só no último mês, em mensagens privadas ou comentários à vista de todos, fui chamado de quase tudo.
Oportunista.
Machista.
Maricas.
Cobarde.
Medíocre.
Canalha.
Em mensagens para o meu telemóvel houve quem dissesse sentir vergonha de mim…
Isto para não falar da política…
Uns que gritam comuna.
Outros que sou uma vergonha por trair a esquerda.
Ou no futebol quando me chamaram lampião.
Ou quando os lampiões me gritaram que traí o Benfica por ter elogiado o Sporting ou o Porto.
No princípio deste mês houve quem afirmasse que eu era esperto por ter filhos que serviam para esconder a minha homossexualidade e quem jurasse que odiava as mulheres e devia ser cancelado.
Os fachos ameaçam-me assiduamente.
E os comunistas tratam-me assiduamente como um pária.
2.
Não te quero falar de mim.
Se o faço é para tocar ao de leve no assunto que tem divertido os portugueses – e a mim também, envergonhadamente confesso.
Os Anjos.
O julgamento do ano.
A indemnização de mais de um milhão de euros pedida pelos dois cantores a Joana Marques.
3.
Já me ri muito com esta parvoíce.
A referência aos problemas de acne é uma obra-prima do nonsense.
A confissão de que um deles não deseja que os filhos o vejam, em algum momento, como um assassino, é de arrepiar.
Mas o que constrange, o que realmente surpreende, é assistir em tempo real ao mais rápido assassinato de uma carreira artística por parte dos próprios.
4.
É que o gozo de Joana Marques é legítimo, é o seu trabalho e o humor não pode ser colocado em causa.
Ou, pelo menos, não pode ser colocado em causa quando, como neste caso, o que a Joana fez, sejamos sérios, não tem importância alguma.
Foi inócua.
Pode doer, eu também já me queixei do melhor humorista português – e o que Ricardo Araújo Pereira me fez foi incomparavelmente mais duro.
Pode doer, mas aguentar é um sinal de inteligência e de respeito pela liberdade, pela democracia, pela comédia que tem, tantas vezes, salvado o mundo e o país da barbárie.
5.
Quem aconselhou os Anjos a este suicídio público?
Como é que eles poderão continuar a cantar em feiras e arraiais por esse país fora sem serem gozados?
Um milhão de euros?
Acne?
A dificuldade de encararem os filhos?
Se tivessem ironizado com a situação e entrado na brincadeira o assunto teria morrido no próprio dia da piada da Joana.
Mas preferiram dar-se à morte.
Talvez por publicidade, talvez por acharem que muita gente estava disponível para os defender, talvez porque as pessoas que os rodeiam estarem numa bolha e não compreenderem o mundo, talvez pela soma de tudo isto, não sei.
O que sei é que os Anjos se afastaram do paraíso.
Pode ser que um dia regressem ao Éden, mas a escolha de tirar dois bilhetes para o inferno foi sua.
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