1.
Regresso ao bairro da infância uma vez por ano, geralmente nos meses em que não chove ou faz frio.
Nunca digo em casa que o vou fazer, nunca levei os meus filhos ou telefonei aos amigos que fora das brincadeiras de criança deixaram de fazer sentido.
Regressei ontem a Campo de Ourique, o meu lugar antes de todos os outros.
2.
“Nasci” no número 99 da Correia Teles, no último quarteirão antes da Maria Pia que dava para o Casal Ventoso, o maior e mais concorrido supermercado de heroína.
Não te quero cantar o fado do desgraçadinho.
Tive dificuldades, mas fui um privilegiado. A família do meu pai guardava livros em estantes, sabia comer a qualquer mesa e a avó Alice levava-me ao São Carlos e às salas de chá no Chiado.
Mas é da pobreza que me lembro e tenho saudades, acreditas nisto?
Dos passeios com a minha mãe, sempre tão bonita, sempre tão alta (só depois percebi que era baixa), sempre com a mão dela na minha, a corrermos o bairro, a falarmos com as pessoas, a entrarmos no Eduardo dos Livros onde eu podia sempre levar a banda desenhada se prometesse devolvê-la no dia seguinte.
Das camisolas de lã que vendia na Lanidor. Quando acontecia, com dinheiro na mão, passávamos pela Bonina e comíamos um barquinho de Doce de Ovos.
E quando corria mesmo bem, quando a mãe ficava com o porta-moedas desafogado, fazia um arroz à valenciana com lulinhas, camarões, ervilhas e salsichas.
Um arroz à valenciana com tudo.
3.
Tenho saudades e por isso regresso, assim que o Verão me toca, à rua da minha infância onde a mãe já não está.
Nem a Bonina.
Nem agora se podem vender camisolas nas lojas de luxo.
O Eduardo dos Livros existe, mas já sem o Eduardo e os livros que me emprestava.
Sobrevivem apenas os meus passos, lentos e cansados de velocidade.
Continua a Correia Teles e o prédio 99 onde no “1ºDto” vive agora outra família, outras pessoas, outra mãe e, quem sabe, outro miúdo como eu.
Ou então talvez sejamos nós que lá continuamos.
Se tivesse tocado à campainha talvez nos pudéssemos ter reencontrado, talvez ela tivesse descido para me dar outra vez a mão ou um barquinho de doce de ovos que me devolveria um sorriso pateta que não sei onde deixei.
Texto e programa de Luís Osório
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