1.
Jorge Jardim Gonçalves acaba de fazer 90 anos.
Continuamos a marcar almoços, continuamos a falar pelas tardes dentro, continuamos a telefonar um ao outro sempre que há uma data importante.
Fui o seu biógrafo, o que me honra.
Já passou mais de uma década, o tempo brinca connosco quando começamos a envelhecer…
… desculpa o aparte, escrevi “O Poder do Silêncio”, um livro com quase mil páginas sem um único desmentido, o que não deixa de ser extraordinário pois o lançamento aconteceu em pleno processo BCP.
2.
Jardim Gonçalves foi o banqueiro mais importante da história da nossa democracia.
É consensual, uma evidência.
A fundação do BCP mudou o paradigma do sistema financeiro e da banca em Portugal.
Mas a sua vida é um poço sem fundo de acontecimentos.
A primeira palavra que disse foi um dos momentos mais felizes da vida em família – os pais chegaram a duvidar que alguma vez abrisse a boca para falar.
A doença que lhe mudou a vida. Tinha 17 anos e ficou de cama durante meses a fio.
O dia em que viu Assunção numa estação de comboios.
O dia em que falou pela primeira vez em público.
O dia em que foi para a guerra do Ultramar. Em que carregou mortos às costas e abriu estradas. O dia em que recebeu uma Cruz de Guerra.
Os dias em que trabalhou na construção do Porto de Leixões.
O dia em que aceitou trocar a engenharia pela banca.
O dia do casamento e os dias em que foi pai.
O dia em que perdeu um filho.
Os dias em que foi avô
O dia em que saiu de Portugal e se tornou íntimo do Opus Dei em Madrid.
O dia em que Mário Soares lhe ligou para regressar.
O dia em que fundou o BCP.
3.
O dia em que me convidou para escrever a biografia e eu lhe disse que não.
– Então porquê, perguntou.
– Sr. Eng. por tudo. Sou de esquerda, o meu pai é homossexual, a família é disfuncional, tenho problemas na minha relação com Deus, nunca escrevi sobre banca, somos de gerações diferentes e nem sei fazer o nó de uma gravata. Porque raio desejaria que fosse eu a escrever o livro da sua vida?
O Sr. Eng. levantou-se e, depois de me ajeitar o nó da gravata, respondeu-me:
– Por tudo isso, Luís.
4.
Vitórias atrás de vitórias.
E depois as desilusões.
O golpe de poder no BCP.
A morte dos seus irmãos.
A partida de Assunção.
A tristeza com os movimentos do mundo, com a agressividade das ruas, com o ressentimento que cresce como erva daninha.
Mas, ainda assim, a vontade de saber, de procurar compreender, de estar disponível para o mundo, como sempre, desde o dia em que da sua boca fugiu a primeira palavra.
Jorge Jardim Gonçalves acaba de completar 90 anos.
Foi provavelmente a pessoa com quem mais aprendi – apesar de continuar tão disfuncional e incapaz de fazer o nó da gravata como no dia em que almoçámos pela primeira vez.
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